Da práxis psicanalítica

Carlos Farate[1]

O título do artigo de Carlos Barredo permite ante-ver o belo, envolvente e sóbrio excurso que irá desenvolver ao longo de dez páginas que convidam o psicanalista-leitor, cada leitor, a interrogar-se sobre a identidade psicanalítica da sua prática terapêutica. Daí, provavelmente, a escolha da formulação «De quarentenas» no título do seu ensaio crítico, que, em meu juízo, estende a interrogação que acima referi além da atualidade da inibição do corpo a corpo, que para Bassols, citado pelo autor, reenvia à política da resposta social à pandemia pelo SARS-Cov-2. Com efeito, através de uma escrita metapoética, com achegas subtis de crónica do tempo que passa, Barredo convida-nos a entre-ver as diferentes formas e dimensões da comunicação psicanalítica. Por aí, obra um tema crucial na procura da verdade psíquica, alheia à razão e aos sentidos do sujeito em análise, que institui e, simultaneamente, constitui o fio condutor e a finalidade maiêutica da práxis psicanalítica.

A estrofe poética de António Machado, que nos oferece a ler em epígrafe, é, a este propósito, uma das mais belas, e singelas, sentenças psicanalíticas que alguma vez li a propósito da procura da verdade que inspira o encontro de analista e de analisante em sessão, e entre sessões, e condensa, de um modo que só ao poeta é dado fazer, conceitos tão exigentes como a intersubjetividade e a comunicação de inconscientes.

Ora, para o autor, a pandemia e a necessidade do ajustamento das «ferramentas» conceptuais da técnica psicanalítica à comunicação virtual, à distância (mas não é afinal a psicanálise, «de bout à bout», dessubjectivação do virtual, em modo real ou imaginário, em realidade inteligível ao sujeito em análise?!) que é imposta pela quarentena, na condição de discurso biopolítico da atualidade, servem de álibi à reflexão sobre a substância intertextual da nossa prática terapêutica.

Por aí, descarta elegantemente debates político-institucionais de reduzido valor acrescentado para a teoria da técnica, e concentra-se na indagação especulativa acerca do papel do corpo, do encontro «dos corpos de analista e de analisante», para lá do percetível, no intercâmbio de palavra e de linguagem entre ambos, distinguindo «corpo real» e «corpo-organismo biológico», distinção esta que, na perspetiva fenomenológica, Merleau-Ponty (1964) sintetizou na noção de fisicalidade, e que Lacan (1975–1976), na ótica psicanalítica, que aqui nos interessa, conjugou na noção «parlêtre», traduzível em língua portuguesa como «falante-sujeito», participante numa «eucaristia» que serve de encenação a um setting intersubjetivo em que se entrançam, desentrançam e retrançam os significantes de uma comunicação inconsciente em modo RSI (Lacan explora ironicamente esta encenação «religiosa», como equívoco, num dos seus brilhantes «jeux de mots», ao recorrer metonimicamente à prosódia do acrónimo Real-Simbólico-Imaginário – na língua francesa «her-es-ie» – para aludir à natureza da cura analítica, a fazer lembrar Freud na obra de 1905 Os chistes e sua relação com o Inconsciente, que tanto apreciava).

Nesta linha de pensamento, Barredo valoriza as vicissitudes transferenciais que os arranjos (e desarranjos) do cenário terapêutico da psicanálise à distância introduzem na transferência-contratransferência e propõe uma analogia brilhante com o modo como a resposta-interpretação do analista às surpresas transferenciais da enunciação do analisante sobre o que não sabe, o enunciado falso que oculta a «fala» do inconsciente, pode abrir ao sujeito em análise um conjunto de associações inesperadas que o aproximam do «próximo», o inconsciente que desconhece.

Barredo sintetiza esta linha de reflexão numa afirmação, que subscrevo por inteiro, já que constitui o cerne da minha própria definição do setting terapêutico como variável estrutural e dinâmica da psicanálise, segundo a qual o dispositivo analítico não pode ficar tributário das circunstâncias exteriores, antes de que «o analista ocupe o lugar que o dispositivo (interno) lhe atribui na transferência». Uma posição estrutural que poderá ser glosada analogicamente na primazia atribuída pelos Baranger (1961–1962) à «fantasia inconsciente» que estrutura o campo psicanalítico, ou na importância crucial atribuída por A. Green (1990) ao «objeto analítico» e por W. Bion (1963/1979) ao «continente-conteúdo» como axes da relação intersubjetiva do par analítico.

Mas é pela referência ao quaternário dos discursos, à tetrápode lacaniana, que define a natureza psíquica, a escritura inconsciente, do laço social na comunicação analítica, e, mais precisamente, à necessidade de distinguir o discurso do amo, significante político da submissão do sujeito ao real do gozo do sintoma, e o discurso do psicanalista, próximo do discurso da histérica e que, por aí, faz entrar o gozo do sintoma na ordem simbólica da comunicação analítica, que Barredo nos introduz a uma fase particularmente criativa e heurística do seu texto.

Criativa porque o autor convoca o equívoco do enunciado comunicativo, neste caso sobre a autoria das estrofes escolhidas num intercâmbio poético entre psicanalistas em tempos de quarentena, como metáfora da diferença entre o que designa de linguagem profética, ditada pelo discurso do amo que, vertido alegoricamente à «homília» do senso comum, ativaria a certeza do sentido único do devir, e a linguagem poética, epítome do discurso do analista, já que interroga o vazio de sentido da linguagem expressiva na procura exegética, também interrogação filosófica, do sentido outro do discurso do sujeito de palavra.

Heurística porque Barredo discute analogicamente a influência exercida pelo dualismo acima referido, tanto na sessão analítica como na política das relações interpares nos institutos psicanalíticos, avançando a tese de que cada um destes discursos encontra expressão diferenciada na práxis terapêutica e na transmissão do pensamento psicanalítico, e da teoria da técnica, nas sociedades e institutos científicos que compõem a IPA.

Começando pela sessão analítica, o autor distingue, por um lado, o discurso profético, o discurso do amo, «armadilha» que decorre da projeção por via da transferência do objeto a (o sintoma-significante seja da ordem da raiva, da inveja, do desejo fálico-omnipotente, ou da tentativa perversa do controlo narcísico do desejo do Outro — A) entre analisante e analista, que, nesta hipótese, ficaria imobilizado no logro narcísico especular do «tudo saber», o saber profético (como sujeito suposto saber) e captado no real do gozo interminável do sintoma («além do princípio do prazer»).

E, por outro, a operação do discurso poético, o discurso do analista, que, ao «histerificar o discurso», como bem refere, introduz uma mobilidade na cadeia de significantes que permite fazer a progressão transferencial de S1 para S2, isto é, abrir ao sujeito em análise, como sujeito barrado (), as múltiplas possibilidades de significar o sintoma polissémico, o significante, tornando-se dono de um desejo próprio, pela terceirização da relação com um outro barrado () que introduz o limite, a castração simbólica que abre ao próximo, ao desconhecido inconsciente.

Já na ordem institucional, o discurso do amo estaria associado, como no intercâmbio poético, à releitura profética dos textos seminais da psicanálise, também dos conceitos que informam a nossa práxis, de um modo ideológico e «académico-pedagógico», isto é, como saber de sentido único de um senso comum psicanalítico «eucaristicamente» imobilizado no ritual de veneração narcísica, o gozo interminável do sintoma, de um setting ortodoxo, dispositivo presencial imutável.

O discurso poético, alegoria ao discurso do analista, estaria, por outro lado, associado à interrogação e à reflexão permanente sobre os conceitos e noções psicanalíticas, num saudável intercâmbio especulativo mediado pela práxis terapêutica, em que a mobilidade dos significantes, a terceirização simbólica e a genuína curiosidade sobre a comunicação de inconscientes e sobre a verdade psíquica marcam o caráter dinâmico da identidade psicanalítica. Modelo disto é, por exemplo, o grupo aberto e dinâmico de reflexão «Lacan em IPA», que Carlos Barredo, com outros analistas, clínicos e não clínicos, movidos pela mesma curiosidade de iluminar a nosso desconhecimento como «via real» de acesso a um saber em movimento, tem animado, e protagonizado, há mais de uma década. Já agora, ocorre-me ainda o aforismo do grande psicanalista Sandler sobre a necessária natureza evolutiva dos conceitos psicanalíticos.

Finalmente, o autor refere-se ao neologismo «acteísmo», de Colette Soler, com o qual esta psicanalista sintetiza ação e ateísmo, para chamar a atenção do leitor, em particular do psicanalista-leitor, de que a ética do desejo em psicanálise não deve ser «cristalizada» no ideal prescritivo, médico ou devoto, «vertido» profeticamente no analisante como «nova relação» ou «nascimento de um novo eu» (?!), entre outros «mimos» do género, antes na procura poética, também metapoética, da iluminação simbólica possível de um desconhecido real ou imaginário pela via de levare do intercâmbio transferencial de palavra, presencial ou à distância, entre analista e sujeito em análise, ambos «falantes-sujeitos» na procura interminável, e sempre inovadora, da misteriosa verdade psíquica.

Finalmente, Carlos Barredo conclui o seu ensaio crítico sobre a práxis psicanalítica em tempos de arranjos (e desarranjos), quase quotidianos, do cenário terapêutico num clima de crise social marcado por vicissitudes a que os psicanalistas não estavam habituados, em qualidade e intensidade, há cerca de oito décadas, com uma afirmação que realça a criatividade e a abertura à surpresa e ao desconhecido em cada sessão analítica, que me faz lembrar o conhecido aforismo de Bion, também ele metapoético à sua maneira, segundo o qual o analista deve estar em escuta analítica em modo sem memória, desejo ou entendimento, «em cada caso, cada dia, cada sessão», como escreve o autor em elegante e sóbria «clôture» ao seu admirável texto psicanalítico.

BIBLIOGRAFIA

Baranger, W & M. (1961–1962). The analytic situation as a dynamic field. The international Journal of Psychoanalysis, 89 (4), 795–826.

Bion, W. (1979). Elements of Psycho-Analysis, trad. francesa, F. Robert, Eléments de la Psychanalyse. PUF. (Obra original escrita em 1963.)

Freud, S. (1969). Os chistes e sua relação com o inconsciente. Em Sigmund Freud. Obras completas, VIII, 11–244. Imago. (Obra original escrita em 1905.)

Green, A. (1990). La Folie Privée – Psychanalyse des cas-limites. Gallimard.

Lacan, J. (1975). Séminaire XX, Encore. Éditions du Seuil.

Merleau-Ponty, M. (1964). Le Visible et l’Invisible. Gallimard.



[1] Psiquiatra e Psicanalista. Professor Associado do Instituto Superior Miguel Torga. Membro Titular, com funções didáticas, da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da Associação Internacional de Psicanálise (IPA). Membro da Comissão de Ensino da SPP. Diretor da Revista Portuguesa de Psicanálise. E-mail: carlos.farate@sapo.pt